a garota do cabelo enferrujado



O sinal tocou. Para mim, era o som da liberdade, quero dizer, o som muito irritante da liberdade.
Guardei meu caderno e livro de História na mochila, e sai da sala o mais rápido que pude.
Era um dia nublado e frio em Londres, como quase sempre. Mas não iria para casa naquele momento. Havia algo que tinha que fazer, e pode parecer meio bobo, mas nunca iria para casa sem antes passar na biblioteca que ficava perto do colégio. Virou um ritual, sabe?
Quando cheguei, empurrei uma das portas de vidro com o ombro direito, e entrei sem cerimônia.
A bibliotecária sorriu quando me viu. É claro que ela me conhecia muito bem, pois dos meus quinze anos de vida, ela havia presenciado cinco, então eu já não era somente uma garota qualquer, com cabelos ruivos enferrujados e olhos castanhos, que usava somente calças jeans, camisetas de bandas antigas e tênis All Star. Ela me conhecia pelo que eu realmente era: uma amante dos livros.
Sorri de volta e reparei em um de seus muitos vestidos estampados. ( Estampa de hoje: pássaros azuis em fundo preto)
Me dirigi a uma das dezenas de estantes e fui puxando alguns títulos da prateleira. Eu costumava ler de tudo - quadrinhos, romances, terror, clássicos, desconhecidos, ficção -, como eu disse, tudo. Não havia um estilo definido para mim com os livros, assim como na música.
Para mim não importava o estilo. O que importava mesmo, era buscar um mundo qualquer, para eu conseguir sair do meu próprio, entende?
Foi assim que tudo começou de qualquer forma, lembro até hoje do dia. Era um dia nublado e frio, exatamente como este. E o humor do céu combinava perfeitamente com o que estava acontecendo na minha vida.
Vou falar sem rodeios antes que você comece a coçar sua cabeça para descobrir.
Meu pai havia morrido. Isso mesmo. Em um acidente. Aparentemente ele estava atravessando a rua, quando um motorista bêbado veio em sua direção e... Bem, você já sabe o resto.
Como o motorista bêbado também morreu,  e era sozinho na vida, somente ficamos com a dor da perda.
Quando descobri o que havia acontecido pela minha mãe, e a vi chorando, descobri que não podia fazer o mesmo, porque eu deveria cuidar dela, como ela sempre cuidou de mim. E por dois dias eu não chorei, mas quando chegou o dia do velório, eu não aguentei.
Sei que não deveria, mas eu não fui ao velório do meu pai, e nem ao enterro. Não consegui.
Já era muito para mim a dor permanente no meu coração, não conseguiria ver isso no rosto de mais vinte pessoas da nossa família, sem falar nos amigos do meu pai.
Então, no último minuto, quando me olhei no espelho do meu quarto, usando um vestido preto com mangas longas até os joelhos, e de All Star pretos, comecei a pensar em uma das muitas vezes em que conversei com o meu pai.
Era tarde, e estavámos no sofá da sala. Ele estava lendo um livro, e eu estava escutando Queen nos meu fones de ouvido azuis, quando de repente perguntei:
- Como o senhor começou a ler, pai?
E ele somente olhou para mim, sorriu, e respondeu:
- Os livros são uma ótima forma de escapatória.
Não havia entendido e recomecei a escutar Queen. Mas naquele dia, o dia em que chorei em frente ao espelho, o dia em que eu sai de casa escondida deixando apenas um bilhete para minha mãe explicando que não iria ao velório, o dia em que entrei na biblioteca com cautela, e o dia em que peguei um livro qualquer e sentei em uma mesa qualquer e comecei a ler, eu entendi que... Se há dificuldades na sua vida, busque os livros. Eles não vão mudar a sua vida, mas lhe darão uma escapatória.
E mesmo depois daquele dia, eu comecei a ir na biblioteca todos os dias.
Nos primeiros eu abria a porta com cautela; nos seguintes, eu comecei a sorrir para a bibliotecária; e nos restantes, sem preocupação alguma. 
Sei que sou um pouco confusa para você acompanhar, e fiz esse rodeio todo apenas para contar uma parte da minha história, mas foi uma parte muito importante, e que jamais vai sair de mim.
Ah! Outra escapatória para os seus problemas: música. Qualquer uma, de qualquer estilo, o que importa é que você goste.

- a garota do cabelo enferrujado

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